sábado, 31 de outubro de 2009

A Bruxa e o Caldeirão

Quando preparava uma sopa com uns olhinhos de couve

Quando preparava uma sopa com uns olhinhos de couve para o jantar, a bruxa constatou que o caldeirão estava furado. Não era muito, não senhor. Um furo pequeníssimo, quase invisível. Mas era o suficiente para, pinga que pinga, ir vertendo os líquidos e ir apagando o fogo. Nunca tal lhe tinha sucedido.

Foi consultar o livro de feitiços, adquirido no tempo em que andara a tirar o curso superior de bruxaria por correspondência, folheou-o de ponta a ponta, confirmou no índice e nada encontrou sobre a forma de resolver o caso. Que haveria de fazer? Uma bruxa sem caldeirão era como padeiro sem forno. De que forma poderia ela agora preparar as horríveis poções?

rosmaninho, três dentes de alho, uma semente de abóbora seca

Para as coisas mais corriqueiras tinha a reserva dos frascos.

Mas se lhe aparecia um daqueles casos em que era necessário preparar na hora uma mistela? Como o da filha de um aldeão que engolira uma nuvem e foi preciso fazer um vomitório especial com trovisco, rosmaninho, três dentes de alho, uma semente de abóbora seca, uma asa de morcego e cinco aparas de unhas de gato.

Se a moça vomitou a nuvem? Pois não haveria de vomitar? Com a potência do remédio, além da nuvem, vomitou uma grande chuvada de granizo que furou os telhados das casas em redor.

Mantinha-se a pão e água, que remédio

Era muito aborrecido aquele furo no caldeirão. Nem a sopa do dia-a-dia podia cozinhar. Mantinha-se a pão e água, que remédio, enquanto não encontrasse uma forma de resolver o caso.

Matutou dias seguidos no assunto e começou a desconfiar se o mercador que lhe vendera o caldeirão na feira há muitos anos atrás a não teria enganado com material de segunda categoria. A ela, bruxa inexperiente e a dar os primeiros passos nas artes mágicas, podia facilmente ter-lhe dado um caldeirão com defeito.

primeiros passos nas artes mágicas

Decidiu então ir à próxima feira e levar o caldeirão ao mercador. Procurando na secção das vendas de apetrechos de cozinha, a bruxa verificou que o mercador já não era o mesmo.

apetrechos de cozinha

Era neto do outro e, claro, não se lembrava – nem podia – das tropelias comerciais do seu falecido avô. Ficou desapontada.

A bruxa e o caldeirão

Perguntou-lhe, todavia, o que podia fazer com o caldeirão furado. O mercador mirou-o, remirou-o, sopesou-o com ambas as mãos e disse:

– Este está bom é para você pôr ao pé da porta a fazer de vaso. Com uns pés de sardinheiras ficava bem bonito.

A bruxa irritou-se com a sugestão e, não fosse a gente toda ali na feira a comprar e a vender, transformava-o em onagro.

Acabou por dizer: – A solução parece boa, sim senhor. Mas diga-me cá: Se ponho o caldeirão a fazer de vaso, onde cozinho eu depois? – Neste novo que aqui tenho e com um preço muito em conta...

A bruxa olhou para o caldeirão que o mercador lhe apontava, sobressaindo num monte de muitos outros, de um brilhante avermelhado, mesmo a pedir que o levassem. A bruxa, que tinha os seus brios de mulher, ficou encantada.

O mercador aproveitou a ocasião para tecer os maiores elogios ao artigo, gabando a dureza e a grossura do cobre, os rendilhados da barriga, o feitio da asa em meia lua, a capacidade e o peso, tão leve como um bom caldeirão podia ser, fácil de carregar para qualquer lado.

– Pois bem, levo-o.

O mercador esfregou as mãos de contente.

– Mas aviso-o – acrescentou a bruxa. – Se lhe acontecer o mesmo que ao outro, pode ter a certeza de que o transformarei em sapo.

O mercador riu-se do disparate enquanto embrulhava o artigo.

A bruxa e o caldeirão

Os anos foram passando e a bruxa continuou no seu labor.

Até que um dia deu por um furo no novo e agora velho caldeirão.

Rogou uma praga tamanha que o neto do segundo mercador que lho vendera, a essa hora, em vez de estar a comer o caldo na mesa com a família, estava num charco a apanhar moscas.

A bruxa e o caldeirão



José Leon Machado



Fonte: www.dominiopublico.gov.br

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